Os trogloditas invadiram o seu cérebro. Ficou vazio e sem paciência. Cinema? Não tem paciência. Teatro? Não tem paciência. Queres umas calças pretas ou umas calças brancas? Não tem paciência. Esgota-se o pobre rapaz com tanta estabilidade e conforto. Quer aventuras radicais e sonha com aventuras delirantes em que ele, o herói, sai triunfante nos braços da multidão depois de salvar o mundo de uma catástrofe ambiental. Fecha os olhos e imagina-se nuam praia azul de areia cinzenta, com um vulcão em erupção ao fundo e vê-se flutuando por cima das cinzas, sem um arranhão, mas feliz por ter saído do seu cubículo. À noite, lê o Dilbert aos quadradinhos para se identificar com as desgraças dos colaboradores de outras empresas. As desgraças são sempre relativas, claro. Se não tivesse emprego, o nosso rapaz do subúrbio estaria bem mais infeliz, mas não estaria mais vivo? Mais criativo? Oh, sim, o carro, a casa, a comidinha, o seguro, o irs, o nosso pobre herói não foi preparado para as coisas do real quotidiano, pensou talvez que tudo seria mais fluido. Disseste fluido ou florido? Disse as duas coisas. Pensou ele. Que tendo emprego, não estaria a contar os tostões. Que, tendo casa, as suas conquistas amorosas iriam de vento em popa. Que, tendo carro, poderia passear-se pela marginal e os domingos não seriam vazios. Come chocolates, pequeno, come chocolates, não há maior metafísica do que comer chocolates! E ele come, pedaços gordos de chocolate negro de culinária, antes durante e depois das refeições. No dia seguinte, a rotina espera-o, pacata e serena. A segunda circular, o carro a pedir gasolina, as notícias da tsf, as politiquices do nosso pequeno rectângulo. O nosso rapaz fecha os olhos outra vez e olha para o relógio na esperança de que sejam seis da tarde. Mas não são.
Humm... E se fizesses uma informação? Um telefonema? Uma consulta de saldos? Uma combinação para café, chá ou laranjada? Não? Mmmmm.... E se fizesses uma pausa para KitKat? Não? Talvez Coca-Cola? Também não? E se fosses dar banho ao cão? Como dizes? Não tens cão? Bom, o teu caso é bicudo. Tens emprego, tens casa, tens companhia, tens amigos, tens saúde, tens música, tens livros, tens meias quentes de inverno e meias frescas de verão, que mais queres tu? pergunta-lhe o Coro, levantado e de cabelos eriçados e peito ufano, a roçar alguma impaciência.
Quero sentir-me vivo. Mas, principalmente, não quero nada do que tenho e quero tudo o que não tenho.